
O crime do fura filas
Dr. Mauro Bonfim: OAB/MG 43.712
@maurobomfim
Depois de uma longa peregrinação pelos corredores do Fórum, encerrando mais um dia estafante de trabalho e carregando debaixo do braço um volumoso processo, Leopoldo Heitor abre a porta de vai e vem do boteco da esquina:
– Esse país virou as catâmbrias, como diria o velho Machado .
O impoluto Alfredo, o estagiário que já se aboletara no balcão sorvendo um chope gelado cerrou os olhos com ar de seriedade:
– Mas o que passa com o mestre. E esse aborrecimento?
Sorvendo logo um gole de conhaque para abrir os trabalhos, Leopoldo Heitor lastimava-se:
-Francamente, meu caro, querem agora criminalizar o jeitinho brasileiro, mais enterrado em nossa cultura do que sapo de macumba.
Ouvindo isso, o jovem estagiário quis saber se era mais uma dessas judicializações que hoje abate sobre tudo e sobre todos.
Depois de uma pausa, fitando o copo de conhaque com mais uma dose que o dono do bar providencialmente encheu, o veterano rábula, brandindo no ar os punhos, continuou:
– É principio comezinho do direito, meu caro, que não há crime sem prévia lei que o defina. É a essência do direito romano. É das Ordenações Manuelinas. Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege.
Depois de gastar o latim, andando de um canto a outro, agitado, o experimentado advogado desdenhava:
– Não é preciso ser hermeneuta, nem percevejo de fórum, para saber que é impossível criminalizar o fura fila da vacina. Não há norma que defina a tipicidade formal e material.
– Mas e o dano coletivo? E a improbidade? – questionava o estagiário.
E o velho homem do direito, alma vivente do meio forense há meio século, quase perde as estribeiras:
– Veja bem, seu intérprete de primeira hora. Isso são firulas, são filigranas, são alicantinas. Nem nos tempos da revolta da vacina. Nem se Oswaldo Cruz se revirasse no túmulo.
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